17 junho 2011

O sebo

Olho para os livros comportados nas prateleiras. Como são bonitos! Acredito que seja  o único objeto que não admitimos tratar como tal. Seria um perjúrio contemplar  a coleção dos Imortais da Literatura, edição em couro, os títulos lavrados em relevo, aquela potência de mais de noventa volumes e não se sentir feliz . Ter livros é uma necessidade, uma referência. É o cenário em que cresci. Como gostar de plantas e animais de estimação. Foram muitas as estantes, nos mudávamos e as caixas abarrotadas de livros se mudavam com a gente. E assim mantenho a tradição. O Livro não é objeto comum, claro que não. Eles compõem o ambiente, trazem aconchego e personalidade. Fico meio desapontada quando vou à casa de alguém, bato o olho e há aquele deserto de muitos móveis, telas e tapetes. Se não houver nem um punhado de livros, desconfio no ato! E se houver, dependendo dos títulos, desconfio ainda mais! 
Trabalhei uma época numa livraria e sebo. Constatei algumas curiosidades sobre a vida que pulsa num comércio como esse. Uma delas é que nós, mulheres brasileiras, lemos muito pouco. A grande maioria das frequentadoras eram mães sempre mal humoradas e apressadas com listas de livros escolares, puxando seus filhos pelo braço, sem tempo para olhar nos nossos olhos, quanto mais para livros. Ou jovens atrás de edições de segunda mão para leitura acadêmica, na maioria estudantes de sociologia, psicologia e direito. As leitoras que buscavam genuinamente um livro para ler, corriam para a sessão de auto- ajuda, ou best-sellers de uma autora muito requisitada, Norma sei la o quê  _  ja não me lembro o nome _  uma leitura de gosto duvidoso, garanto! O top de vendas eram os livros espíritas. Passavam reto pelo corredor de literatura, filosofia, sem sequer pestanejarem. Os esotéricos também faziam bastante sucesso entre as mulheres, ficavam próximos à turminha da auto-ajuda. As estrangeiras lêem mais. Elas sim, na maioria senhoras atrás de pocket books. Mas não fugiam muito dos tradicionais romances água com açúcar. Quando entrava um casal, variavelmente os homens ficavam mais tempo nos títulos,  as mulheres dispersavam e logo iam para a sessão de dvds e cds. Mães de criancinhas também eram boas clientes atrás de livrinhos que dobram, cortam, a figura pula, ou tomam banho com a criança _ aqueles de almofadinha de borracha _. Decoradoras de festas, e também o pessoal que alugava estantes inteiras para cenário, eram bem práticos. -" Quero duas estantes desses livros velhos em couro nos tons marrom e preto". 
Eram três lojas, e trabalhei em todas elas _ fazia rodízio _. Algumas funcionárias muito mais experientes que eu, sabiam tudo sobre todos os títulos e temas. Mas não liam... Era como vender qualquer coisa: sabonete, roupa, bichinho de pelúcia, um trabalho como outro qualquer, e a força do hábito às ensinava a conhecer o lugar onde estava Ésquilo, Arthur Rimbaud, ou Zíbia Gasparetto. Era muito bom trabalhar na livraria, tinha desconto e comprava por uma pechincha. Fora os autores que não conhecia. Quando procurava para um cliente e ele deixava o livro em minhas mãos, tinha a sensação muitas vezes, de ser uma trama do destino para eu abri-lo. Gostava mesmo era dos clientes compulsivos, compravam livros pelo prazer de ler, ter, de possuir ou serem possuídos, não sei bem. Eram bons de conversa. Valia tudo: o cheiro, a capa, tamanho, cor, textura, era uma delícia assistir e compactuar com todo processo. Não saiam com menos de dez livros, e voltavam em dois, três dias, no máximo em uma semana. Um jornalista que fiquei amiga, era um desses, e sempre livros de romances policiais. Tinha todos e queria mais e mais. Me contou que alugou um apartamento no prédio em que morava, dois andares abaixo do seu, para os livros habitarem, já que o casamento estava em crise, tal sua obssessão e compulsão. Assim, resolveu o problema. Os livros eram uma espécie de  amante.
Contrariando o esteriótipo do paulistano  _ apressado, frio e individualista _ as pessoas na maioria, eram afáveis, dispostas a conversar sobre  livros, e muitas vezes refletir sobre a vida. Aos domingos famílias inteiras passeavam, e haviam também os solitários. Esses, entravam na loja com passos mansos, de bem com a vida, curtindo uma manhã em livrarias e se levando para passear.
Uma das situações que me comovia, era abrir um livro e encontrar uma foto, ou carta, às vezes uma dedicatória especial carregada de emoção, e ficava pensando como aquele livro , que um dia foi a representação de um sentimento, foi descartado pela vida.
Havia os gatunos. Alguns conhecidos na praça. Ladrões de livros e cds. Recebia um telefonema das outras lojas para ficar de olho que fulano estava na área. Nunca percebi nada. Nos sebos é tradição pechinchar na hora de pagar. Quando eram estudantes sempre que podia dava largos descontos, acho justo. 
Tinha os ambulantes que passavam todos os dias vendendo tortinhas, doces, pães caseiros, era mesmo tentador.
Haviam os famosos chatos figurinhas conhecidas no pedaço.. Ficavam horas, bagunçavam os livros, falavam demais e dificilmente levavam alguma coisa. 
Acreditava que um bom livro valesse um preço justo, mas não é assim. São comprados pelos donos dos sebos a preço de banana. .A avaliação do lote é pelo título, estado de conservação e se é de venda fácil. Uma dica: se for vender livros para o sebo, leve aos poucos, quanto maior o volume, menor o preço. Vale também para livros de arte, e para os mais raros. A burocracia para você doar às bibliotecas faz com que as pessoas desistam e acabem despachando nos sebos. No interior onde moro, não há livraria nem sebo, apenas uma papelaria com alguns livros. É uma pena, faz falta!