Restaurante em Folegandros - Grécia
Estante de livros na praça em Folegandros - Grécia
Há alguns dias reencontrei uma antiga vizinha dos tempos de criança. Morávamos na mesma rua. Era uma cidade pequena, tranquila, onde todos se conheciam. Ainda hoje me parece perfeita _ lembranças de infância são poderosas. Naquela época enxergava homenzinhos em troncos de árvores no jardim de casa. Tinha dúvidas seríssimas: se era ou não possível tropeçar em sacis, mulas sem cabeça e todo o imaginário infantil reforçado, como boa paulista, pela paixão por Monteiro Lobato. Ainda meninas nos mudamos com nossas famílias. Fui para São Paulo e ela para o Rio de Janeiro. Nosso reencontro aconteceu ao acaso, nos esbarrando numa rede social.
Conversamos longamente, e lá pelas tantas comentei que tinha um blog. Ela passou por aqui e então me disse: ''vi seu blog'', e nada mais. Normalmente as pessoas comentam o que acharam, variavelmente elogiam, enfim, o de praxe _ e ela nada. Fiquei curiosa e resolvi perguntar. Sem titubear, me disse que discorda inteiramente da forma que me relaciono com os livros _ referia-se ao texto que postei há alguns dias chamado O Sebo _ e completou: "na medida em que ele é guardado numa estante, depois de lido, perde sua função. Por isso eu não guardo os livros que leio, passo-os adiante. Deixo em bancos de jardim, dou para amigos e conhecidos. Como moramos num país que não prioriza a cultura, consigo fazer com que as pessoas se interessem em ler, sobretudo aquelas que não têm oportunidade de compra-los, em resumo, sou uma bibliotecária muito moderna. Na última viagem que fiz à Grécia, fui a Folegandros, e lá percebi que havia perdido o livro que estava lendo e que havia trazido do Brasil. No dia seguinte, fomos almoçar em um restaurante que fica na praça principal; qual foi meu espanto quando descobri que, em pleno restaurante a céu aberto, um cidadão tinha colocado uma estante na praça com os livros que certamente haviam sido doados por turistas. Olhando a estante me deparei com meu livro. Tentei explicar que era meu e indaguei se poderia pegá-lo. O dono disse que poderia levar o que quisesse, que estavam lá para serem lidos. Lá é tradição deixá-los nos bancos das praças. As pessoas não conseguem entender como uma bibliotecária como eu, que a príncípio é uma guardiã de livros, não consegue guardá-los".
Quando minha amiga terminou sua narrativa, eu estava totalmente fascinada. Aquela rua especial da infância, os tempos modernos que nos devolvem amigos perdidos, e a forma generosa e revolucionária que ela em especial se relaciona com os livros.
Olhei para minha estante abarrotada deles. Senti-me profundamente constrangida. Sempre procurei não me deixar seduzir por coisas de comprar. Às vezes acontece de abrir a porta do carro errado quando o modelo é parecido. Percebi que muito do que chamava amor aos livros era vaidade. Faz com que eu retenha informação, decore minha casa, exponha algum conhecimento pessoal.
A relação tão próxima que minha amiga tem com os livros, a de arquivista e guardiã, trouxe a ela esse entendimento: depois de lido é só papel.
Me senti meio pirada, como as pessoas apegadas às suas coleções. E quantas não são assim. Estoques de bolsas, pares de sapatos, quadros fortalecendo o patrimônio. Tapetes com dois mil pontos o metro quadrado e assim vai. Mas nada pode ser tão egoísta como não passar um livro adiante. Pura vaidade. Depois dessa conversa separei alguns e com dificuldade vou doar. É um começo. Penso nisso. Aquele livro fechado como paisagem está morto. Tanto quanto um poeta amordaçado.
Planejo separar os mais queridos, os que sempre lerei. O restante, para o mundo.
Obrigada, Beta!